O que significa não enxergar o mundo e o que o mundo não enxerga? Pessoas com deficiência visual são capazes de perceber e enfrentar a vida muito além da visão, e precisam de oportunidades.

Nos deparamos com o desafio de conhecer nossas próprias limitações para entrar em contato com uma realidade que faz parte da vida de milhões de brasileiras e brasileiros, e precisa de atenção. Uma pesquisa publicada na revista The Lancet Global Health (2021) aponta tendências sobre a cegueira e deterioração da visão. Segundo o estudo, cerca de 61 milhões de pessoas da população mundial estarão cegas até 2050, bem como outros tipos de deficiência visual devem dobrar de número. 

Conhecemos a ACSL – Associação de Cegos Santa Luzia por meio da iniciativa de captação de recursos do professor Antônio Cabral, sócio-benfeitor da organização e membro da Associação dos Ex-Alunos da Escola de Engenharia da UFMG. A ACSL atua com o crescimento educacional e profissional para pessoas com deficiência visual em situação de vulnerabilidade. Estar em contato com a realidade da Associação nos conectou imediatamente com a proposta de sensibilização social que pulsa em nosso propósito. 

Iniciamos uma jornada de aprendizado e nos disponibilizamos para somar forças, conectando o trabalho da Conectidea e da Estalo Criativo com a causa, mobilizando e incluindo pessoas para abordar o tema de forma sensível e, principalmente, com o protagonismo das pessoas com deficiência visual dentro do audiovisual. Contamos com a consultoria de Carlito Homem de Sá e audiodescrição de Ana Cláudia Xavier, que se juntaram à nossa ação voluntária para produzir um vídeo-conscientização com excelência.

Falar de acessibilidade é essencial, e promover a inclusão é um dever de todos os setores da sociedade. Percebemos que quando esse assunto vem à tona na mídia ou até mesmo nas intervenções de mobilidade em locais públicos, raramente a deficiência visual é destacada. 

Segundo o Relatório Mundial sobre a Visão, da  Light for the World International 2021 (OMS), globalmente, “pelo menos 2,2 bilhões de pessoas têm uma deficiência visual ou cegueira, das quais pelo menos 1 bilhão delas tem uma deficiência visual que poderia ter sido evitada ou que ainda não foi tratada.”

Ativar a escuta, desconstruir estereótipos e agir

Nós entendemos que para falar sobre uma causa é preciso trazer quem a conhece e vivencia. Por isso, a Conectidea começou a pesquisar mais sobre o tema e conversar com as pessoas que fazem parte e se relacionam com a missão da Associação de Cegos Santa Luzia. Uma das coisas mais interessantes nesse projeto que desenvolvemos é a forma como tivemos que nos adaptar. E sim, o mundo não é pensado para todas as pessoas, isso ficou muito claro. O diálogo é imprescindível e despir-se de qualquer pré-conceito (da realidade) que se atrela ao preconceito (das pessoas) também, principalmente quando você está no lugar do não-saber.

Da esquerda para a direita (pessoas em pé, olhando para frente): mulher negra com blusa verde e uma bengala guia dobrável, seguida de mulher branca, com máscara de proteção e roupa preta com vermelho. Ao lado delas, na mesma linha, dois homens brancos com cabelos castanhos, camisas escuras e calças claras. Os dois também usam máscaras.
Cristina Rodrigues (ACSL), Nanda Soares (Conectidea), Ícaro Moreno e Leandro Wenceslau (Estalo Criativo)

Em alguns dias de gravação, foi feita uma imersão neste universo no qual as pessoas que não enxergam têm que se adaptar a um mundo que as ignora. E muitas reflexões surgiram de tudo isso, em relação à mobilidade, à segurança, acesso à educação e arte, à tecnologia como instrumento de transformação. 

Quando se fala de deficiência, é provável que as pessoas sequer pensem que a própria vida pode mudar e a sua existência passe a ter que considerar os direitos e as dificuldades que antes pareciam parte de um plano paralelo. Pessoas podem nascer com visão nula; podem ter baixa visão (em diferentes graus), deficiência visual severa ou leve. Isso significa que algumas pessoas que são classificadas como cegas, podem ainda ter algum grau de visão. A OMS ( Organização Mundial de Saúde) baseia-se em valores quantitativos de acuidade visual e/ou do campo visual para definir isso clinicamente, indicando categorias que incluem desde a perda visual leve até a ausência total de visão. 

Angelina Gonçalves, coordenadora do Centro de Arte Popular, museu que integra o Circuito Liberdade de Belo Horizonte, nos recebeu para a gravação de algumas cenas e entrevista com Cristina Rodrigues da Silva, advogada e atual presidente da Associação de Cegos Santa Luzia – ACSL

Foi um dia para refletir sobre os espaços públicos e abrir espaço de diálogo para pensar como a arte pode ser acessível a todas as pessoas. De acordo com Angelina, apesar do museu ter uma estrutura acessível para mobilidade nos seus espaços, os planos de acessibilidade, de modo geral, não consideram todos os tipos de deficiência, incluindo a visual. 

“Falar de acessibilidade e inclusão é algo muito mais amplo do que imaginamos. É essencial ter conhecimento, treinamento e, principalmente, empatia para tornar os espaços de cultura acessíveis para todas as pessoas. Estamos dando os primeiros passos para otimizar o que já temos e implementar o que for necessário nessa perspectiva.”

Novos deficientes, capacitismo e a luta por oportunidades

Mulher negra, brincos de argola, blusa verde. Ela está com a cabeça erguida com o braço para cima, indo alcançar algo não revelado na imagem.
Cristina Rodrigues – Presidente ACSL em gravação

O mercado de trabalho reflete também as barreiras encontradas por pessoas com deficiências no Brasil. Dados do IBGE 2019 mostraram tanto a taxa de participação dessa população quanto a diferença salarial, que chega a dois terços da remuneração comparada a quem não tem deficiência.  Os dados encontrados constam na publicação “Pessoas com deficiência e as desigualdades sociais no Brasil”. A pesquisa ainda destaca que “mulheres e pessoas de cor ou raça preta ou parda  seguem com desvantagens cumulativas enfrentadas no mercado de trabalho”.

Cristina Rodrigues, ressalta que a ACSL objetiva dar um suporte melhor, pensando nos novos deficientes.

“Muita coisa melhorou em termos de tecnologia e estrutura, mas ainda deixa a desejar. Queremos dar autonomia, ensinar a fazer tarefas diárias, arrumar as próprias coisas em casa e profissionalizar, com superações pessoais e profissionais.”

Ao ser indagada sobre o que mais a incomoda neste mundo que não os enxerga e os encaminha para a invisibilidade, Cristina nos abre os olhos sobre a importância da informação para a inclusão.

“O que mais me incomoda é o capacitismo. Temos que provar o tempo todo que somos capazes. Mesmo você falando que tem mil especializações, não nos dão oportunidade. Duvidam de nossa competência. Nem a oportunidade nos dão, e entregam para quem tem menos formação. Taxam o deficiente como um empecilho para a sociedade. O mínimo que a gente espera, e deseja, é uma oportunidade. Considero também uma falha na mídia. Tudo é muito visual, não tem audiodescrição. Produtos de beleza, por exemplo: ligue para este número na tela. Sempre apontam para o final do vídeo. O público cego fica a ver navios. Quem não escuta, tem acessibilidade, nós não.
A sensação que eu tenho é que acham que não somos capazes de enfrentar o mundo. Se eu chego num lugar, a primeira coisa que fazem é me colocar sentada. Nem nos perguntam, simplesmente acham que somos um fantoche, um bonequinho. As empresas nos chamam por questão de cotas, e não por acreditarem em nós. Meu maior sonho é que nos enxerguem como pessoas capazes de competir por aquela vaga, e não colocar obstáculos. Quando fiz Direito, eu queria ser advogada. Não temos acessibilidade nos sistemas processuais e perdemos a autonomia. Infelizmente não consigo exercer a advocacia com autonomia. Pessoalmente, para todo lado que tento caminhar, tenho obstáculos. Fiquei frustrada. Profissionalmente, tenho vontade de seguir para a defensoria pública.”

O vídeo de sensibilização produzido será lançado oficialmente em dezembro de 2022, com pessoas convidadas para uma roda de conversa e experiência sensorial por meio do Projeto Tocar e Sentir, com pinturas da artista Eni D’carvalho. “Por meio das formas, dos perfumes, a arte desenvolvida no Tocar e Sentir pretende envolver toda a pessoa, aguçar-lhe os sentidos, tocar-lhe a epiderme e mergulhar nas suas emoções.” Será uma imersão além da visão.


Vídeo: O mundo além dos meus olhos

Direção criativa e projeto de sensibilização: Nanda Soares

Direção, edição e finalização: Leandro Wenceslaw

Roda de conversa: Visões da deficiência visual – A arte como instrumento de sensibilização por um mundo acessível e inclusivo

Tocar e Sentir: exposição de pinturas táteis com experiência sensorial

Redação/realização: [email protected] 

Assessoria: [email protected]


Acesse algumas fontes sobre o assunto:

Pessoas com Deficiência e as Desigualdades Sociais no Brasil

https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/34889-pessoas-com-deficiencia-e-as-desigualdades-sociais-no-brasil.html?=&t=resultados

Relatório Mundial sobre a visão

https://www.paho.org/pt/noticias/8-10-2019-organizacao-mundial-da-saude-lanca-primeiro-relatorio-mundial-sobre-visao#:~:text=Globalmente%2C%20pelo%20menos%202%2C2,que%20ainda%20n%C3%A3o%20foi%20tratada.

Publicação: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/328717/9789241516570-por.pdf

Direitos das pessoas com deficiência visual

http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/deficiencia-visual

Estatísticas sobre deficiência visual no Brasil e no Mundo

https://louisbraille.org.br/portal/2020/04/13/estatisticas-sobre-deficiencia-visual-no-brasil-e-no-mundo/

Censo demográfico 2010

Segundo dados do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 18,6% da população brasileira possui algum tipo de deficiência visual. Desse total, 6,5 milhões apresentam deficiência visual severa, sendo que 506 mil têm perda total da visão e 6 milhões, grande dificuldade para enxergar.

O preconceito só produz ignorância

https://jus.com.br/artigos/72877/o-preconceito-so-produz-ignorancia

Comunicóloga/RP, com MBA em Mídias Sociais e Gestão da Comunicação Digital. Mestranda em Transformação Digital. Atua com design e comunicação de causas, campanhas e projetos socioeducativos, sensibilização e inclusão digital. Certificada em Gestão de Projetos (Project DPro pela PM4NGOs), coidealizadora do Circuito Comunicação de Causas e do Movimento A Força das Mulheres no Terceiro Setor. Articuladora social engajada na defesa dos direitos humanos e empoderamento feminino.